Canções em tempos de guerra
Enquanto o mundo desaba Tanga elabora um setlist da resiliência em tempos sombrios

Enquanto estas linhas ganham forma há crianças esmagadas sob os escombros de Gaza, não como dano colateral, mas como alvos previsíveis de uma política militar deliberada. Mísseis russos pulverizam padarias e hospitais na Ucrânia com a mesma frieza com que os estrategistas em Moscou sorriem diante dos mapas. E ainda mais mísseis, como sombras tecnológicas da nova era imperial, cruzam os céus de Tel Aviv rumo a Teerã. A guerra voltou à primeira página como se algum dia tivesse saído.
Mas há sempre algo que resiste ao colapso. A verdade, às vezes, vem em forma de canção. Quando os governos mentem, a música diz alguma coisa. Quando os mortos não podem mais contar, uma melodia carrega sua voz. A canção, neste cenário, não é ornamento nem trilha sonora: é uma forma de resistência. É contrainformação. É o grito que sobrevive aos censores e aos canhões.
A ideia aqui é elaborar um set list como um mapa afetivo da destruição e da coragem. Da Primeira Guerra Mundial às operações contemporâneas que transformam o Oriente Médio e a Europa Oriental em vitrines de armamento ocidental e ambições imperiais, há sempre uma nota desafinando o discurso oficial.
A guerra na Ucrânia não é novidade. É o velho czarismo com tanques ultra tecnológicos. O que Putin chama de "operação especial" tem cheiro de trincheira e gosto de lama. Um retorno hediondo à lógica da guerra total, em que tudo vira alvo. Inclusive a verdade. Já Israel, com sua máquina de guerra alimentada por bilhões de dólares norte-americanos e blindada por resoluções vazias da ONU, parece ter feito de Gaza não um território inimigo, mas um campo de testes. Uma espécie de Hiroshima repetida a céu aberto e em câmera lenta. A linguagem diplomática hesita em dizer o que as imagens mostram: estamos assistindo a um genocídio em tempo real.
E agora o Irã? Israel e Estados Unidos apontam seus mísseis engolindo uma massa de vítimas ao jogar xadrez nuclear fingindo esquecer quem primeiro introduziu ogivas nesse tabuleiro. No Oriente Médio, cada retaliação é também um gesto de hipocrisia em cadeia. O que se vê é a frieza do cálculo. O silêncio sobre as vítimas vem calibrado com os interesses de cada chanceler.
Nesse contexto é possível fazer uma arqueologia da dor escavando a história soterrada em escombros das canções que ajudaram as vítimas a resistir às sombras da derrocada da política. Desde Keep the Home Fires Burning na primeira Guerra Mundial, cantada por quem esperava corpos voltarem da linha de frente, até Stefania, que mistura o lamento popular ucraniano ao hip hop da resistência, há um fio de ferro atravessando os tempos: a música sobrevive onde a humanidade sangra. Ela não é apenas consolo. De certa maneira é também denúncia. Um arquivo emocional do que os arquivos oficiais apagam.
Durante a Segunda Guerra, Lili Marleen uniu soldados de lados opostos, provando que mesmo entre exércitos desumanizados restava alguma centelha de humanidade. Hoje, em Gaza, onde até os hospitais são bombardeados, ou nos campos de refugiados que se espalham como feridas abertas, é uma canção paquistanesa, Pasoori, que rompe as cercas. Um pop em urdu viralizado sem a ajuda de nenhuma ONU ou diplomata, cantando o que os tratados não alcançam: o direito de ser gente.
E há os fantasmas que retornam, como Strange Fruit, de Billie Holiday. A música era sobre linchamentos não de corpos estrangeiros, mas de cidadãos negros nos EUA. Era uma guerra interna. E ela continua. O mesmo ódio racial que fez árvores virarem forcas no Sul dos EUA, agora se reflete nos corpos palestinos insepultos nos checkpoints, ou nos refugiados sírios tratados como peste na Europa fortificada.
A lógica de guerra é sempre cínica. Fortunate Son, do Creedence, rasgava o véu da Guerra do Vietnã: os ricos mandam, os pobres morrem. Nada mudou. Putin não morre nas trincheiras, Netanyahu não precisa de abrigo antiaéreo. Os que pagam a conta são sempre os sem nome, sem sobrenome e sem futuro. E morrem duas vezes: primeiro nos ataques, depois no esquecimento.
Mas mesmo sob bombas, canta-se. Toi et Moi, canção francesa transformada por refugiados sírios em canção de amor e persistência, é menos um hino do que um protesto íntimo. Dizer “eu e você” em meio ao colapso é lembrar que ainda há um sujeito ali. Que a guerra ainda não venceu completamente.
Até Zombie, dos Cranberries, escrita para os mortos da Irlanda dos anos 90, reaparece nos fones de ouvido dos jovens em Kyiv, Gaza e Tel Aviv. Porque todos estão mortos por dentro. Todos caminham como zumbis por ruínas que não construíram, mas que herdam como maldição. E então vem o silêncio. O mais brutal de todos. 4’33”, de John Cage, não é só uma peça experimental. É o som das rádios que caíram. O som das vozes que foram caladas. É a trilha sonora do fim, quando até o lamento se torna perigoso demais para ser ouvido.
Esse set list, portanto, não é um mero amontoado de canções. É um memorial. Um documento acusatório contra generais, ministros e presidentes com seus egos de pavão. Um arquivo sonoro daquilo que a política enterra, mas que a arte exuma. Não se trata de nostalgia. É insurgência. Em tempos de propaganda de Estado e algoritmos de mentira, essas músicas são mais verdadeiras que qualquer editorial do New York Times ou pronunciamento da Casa Branca. Elas não explicam a guerra. Mas deixam claro quem está morrendo. E por isso merecem ser ouvidas. Alto. Até que o silêncio dos que mandam matar não consiga mais abafar a canção dos que querem apenas viver.
Set List: Canções em tempos de guerra
Uma travessia sonora pelos conflitos que moldaram o último século
I Guerra Mundial (1914–1918)
"Keep the Home Fires Burning" – Ivor Novello (1914): Hino doméstico que embalava as famílias à espera dos soldados; cantado em trincheiras e salões.
"It’s a Long Way to Tipperary" – Jack Judge (1912, popularizado em 1914). Marcha quase cômica que virou símbolo dos soldados britânicos; carregava saudade com melodia quase infantil.
"Roses of Picardy" – Haydn Wood (1916). Balada romântica ligada às paisagens devastadas do front francês.
II Guerra Mundial (1939–1945)
"We’ll Meet Again" – Vera Lynn (1939). A voz que embalou o front e os abrigos antiaéreos. Um adeus que prometia reencontro, entre bombardeios.
"Lili Marleen" – Lale Andersen (1939). Originalmente alemã, atravessou lados e idiomas. Soldados de ambos os lados a escutavam, cada um projetando seu amor ausente.
"Boogie Woogie Bugle Boy" – The Andrews Sisters (1941). Ritmo swing para disfarçar a marcha. Um clássico do USO que animava bases americanas.
"Strange Fruit" – Billie Holiday (1939).Não falava da guerra militar, mas da guerra racial doméstica. Um fantasma em forma de jazz.
Guerra da Coreia (1950–1953)
"Goodnight, Irene" – Gordon Jenkins & The Weavers (1950). Canção folk que se tornou trilha sonora involuntária da guerra. Escutada por soldados e famílias nos EUA.
"Sentimental Journey" – Doris Day (1945, ainda em alta nos anos 50). Um desejo por retorno. Nostalgia embalada em orquestra.
Guerra do Vietnã (1955–1975)
"Fortunate Son" – Creedence Clearwater Revival (1969). Hino de repúdio à guerra e à classe que a mandava seus filhos travar.
"The End" – The Doors (1967). Psicodelia em estado bruto. A trilha dos helicópteros em Apocalypse Now.
“Masters of War” - Bob Dylan (1963). Um momento visceral da verve folk de Bob Dylan.
"What’s Going On" – Marvin Gaye (1971). Soul em forma de pergunta. A guerra contada não só no Vietnã, mas também nos guetos de Detroit.
Guerra das Malvinas (1982)
"Brothers in Arms" – Dire Straits (1985). Composta depois, mas impregnada da memória da guerra e da solidão que resta aos sobreviventes.
"Only You" – Yazoo (1982). Canção eletrônica melancólica, muito tocada nas rádios argentinas durante o conflito. Chorava por outros afetos.
Guerras do Golfo (1990–1991 / 2003–2011)
"Everybody Hurts" – R.E.M. (1992). Escapava da moldura política e falava direto com quem ficou: soldados, mães, amigos. Sofrimento universal.
"Paint It Black" – The Rolling Stones (1966, reativada em filmes e séries de guerra). Psicodelia soturna que ressoou em Full Metal Jacket e depois se colou à memória do Golfo.
"Where Is the Love?" – Black Eyed Peas (2003). Crítica pop no auge da Guerra do Iraque. Um lamento coletivo disfarçado de hit.
Guerras contemporâneas: Afeganistão, Síria, Ucrânia
"Zombie" – The Cranberries (1994). Escrita sobre o conflito da Irlanda do Norte, mas reciclada em playlists caseiras durante bombardeios em Kyiv e Gaza.
"Pasoori" – Ali Sethi & Shae Gill (2022). Viral em zonas de conflito do Oriente Médio; cantada em urdu e usada como gesto de resistência suave.
"Stefania" – Kalush Orchestra (2022). Mistura de hip hop e canto tradicional ucraniano. Venceu o Eurovision no meio da guerra. O refrão virou litania de mães e filhos.
"I’m Afraid of Americans” David Bowie. Original de 1997 mas comprovando que, entre outros talentos, de derta maneira Bowie também era profeta.
Extra: O silêncio entre as faixas
"4’33” – John Cage (1952). O silêncio formalizado como peça. Escutado de maneira involuntária por quem perdeu tudo.