Do aplauso como explosão
Variações sobre um fragmento de memória de uma das apresentações mais incríveis que pude assistir em minha vida



Porque há algo como uma fúria demiúrgica que se manifesta no ato da criação que é pura energia em expansão. Quem cria explode e também faz explodir algo em quem acolhe a sua obra. Percebi isso pela primeira vez no rastro incandescente do último acorde rasgado pelo polegar direito de Paco de Lucia que navalhava as seis cordas de sua guitarra como uma sentença escrita num rastro de pólvora percorrido pelo galope da chama que fez da plateia se tornar dinamite pura. O aplauso também é explosão. Tive o privilégio de assistir a uma apresentação de Paco de Lucia e seu trio em algum momento no final da década de 80. Juro, parecia que as paredes do Teatro Guaíra iriam se desfazer em escombros. E eu estava ali em meio àquela explosão. Eu estava participando dela maravilhado como um garoto que estudava violão e que, num momento de muita sorte, pôde passar por um rito iniciático que lhe revelou verdades insuspeitas.
O aplauso é um replay do Big Bang. Um renascimento sísmico de um universo feito de carne, pulso e som. Eu estava num teatro em combustão lenta no fim dos anos 80, assistindo Paco de Lucía com seu trio. Digo “assistindo” como quem diz “sobrevivendo a uma epifania flamenca que me varreu as vísceras e reconfigurou meu entendimento de matéria e espírito”. Quando terminou, quando o último acorde se suspendeu no ar como um fio de fumaça divina, o que veio não foi apenas barulho. Foi gênese. Uma descarga coletiva tão brutal e bela que parecia que o universo inteiro tinha decidido recomeçar dali, naquele teatro, batendo palmas como quem recria planetas.
Paco fumava muito na coxia, e não era pose, era necessidade. De onde eu estava eu podia ver quando ele abria espaço na sua apresentação para os outros dois integrantes de seu trio se exibirem. Ele levantava e ia para a coxia fumar um cigarro. Era como se cada trago fosse um antídoto contra o peso metafísico de carregar o próprio gênio nos ombros. Ele ficava ali, meio curvado, tragando como quem afina a alma antes de subir ao cadafalso do palco mais uma vez. O cigarro era o respiro entre dois mundos: o real, mofado e ordinário, e o outro, aquele que só ele conseguia atravessar com seis cordas e um punhado de fogo nos dedos. Fumar era o intervalo entre o homem e o milagre. Uma forma de se manter terrestre, de lembrar que tinha pulmões e carne, antes de se desintegrar em música.A fumaça subia densa, espiralando no breu dos bastidores como se tivesse vergonha de sair antes dele. Às vezes dava pra ver, da plateia, um fiapo de bruma escapando pela lateral da cortina. Ele fumava como quem ferve por dentro. Como quem sabe que em poucos instantes vai incendiar mais uma vez o teatro inteiro com um único acorde.
E então a música ficava mais encorpada novamente. Acontecia como um encontro entre rios que se juntam para no final darem origem a mais um dilúvio
de aplausos. Cada palma é um choque entre mundos. Cada estalo é o colapso da matéria no instante anterior à luz. Aplauso é o barulho que o tempo faz quando resolve se partir ao meio. E ali, sob a mira ritmada de centenas de mãos em transe, tive a certeza de que aquilo nunca teria fim. Que o Big Bang original jamais cessou. Ele apenas se reencenava ali mais uma vez. Um rito sonoro, a cada vez que um artista como Paco nos arranca da inércia e nos devolve à vida em forma de labareda. O aplauso é a resposta cósmica ao milagre da criação. É o primeiro som depois do silêncio absoluto. O rumor da lava humana cuspida pelo vulcão de quem acabou de ver o impossível e precisa, urgentemente, reagir. Gritar com as mãos. Atirar alma pelos dedos. Um aplauso de verdade é o relâmpago de quem sobreviveu ao sublime.
E o silêncio que o precede é uma corda esticada ao máximo, prestes a partir. É dinamite esperando pela faísca. Um vácuo tão pesado que você ouve até as pulsações do suor. O primeiro aplauso é sempre o primeiro tiro. Depois dele, tudo implode. Desmorona. Reconstrói. O artista ali, no centro da cratera, ainda pingando notas, e o público em estado de combustão, cuspindo fogo em forma de palmas. É química de palco e plateia, alquimia de carne e som.
Paco de Lucía era um xamã de unhas afiadas dedilhando o impossível como quem esfaqueia o ar com beleza. Eu vi esse homem incendiar o teatro. O trio era uma tempestade e Paco era o raio. Cada nota era um estalo do universo se lembrando de que existimos. Era um incêndio de silêncio e explosão. Quando ele tocava, o tempo perdia os joelhos. As cordas deliravam. Os arpejos eram incêndios. Cada pausa era um suspiro entre duas guerras. Trêmolos como súplicas por misericórdia na alma do ouvinte. As seis cordas de sua guitarra como pavios trançados com a fúria de uma divindade implacável. E então: BOOM : o aplauso. O momento em que tudo se converte em pura termodinâmica afetiva. Palmas como granadas de gratidão. Gente chorando, rindo, urrando numa língua esquecida. Uma onda de choque feita de suor, frisson e reverência. E Paco ali, sempre meio envergonhado do milagre que acabara de fazer, como se não tivesse acabado de manipular o DNA do ar com seis cordas e duas mãos. Ele sabia. Sabia que detonou uma ogiva de beleza dentro da cabeça de cada espectador.
Essa expressão espontânea como um delírio coletivo que chamamos “aplauso”, é mais do que uma homenagem. É catarse. É magia sendo ainda mais sublime por uma tempestade de afeto sincero. Palmas são feitiços rítmicos, são preces pagãs, são trovões emocionais. Você bate palmas não por civilidade, mas porque algo te queimou por dentro e precisa sair antes que você exploda também.
É nisso que o aplauso vira criação: detona o fim, mas semeia o recomeço. É explosão fértil, supernova que espalha novas sementes de audição e memória. E não se engane com a gentileza do gesto. No aplauso todo mundo vira um só corpo, uma criatura ruidosa com mil mãos e uma emoção só. Você já viu mil corações batendo em sincronia e cuspindo luz? Isso é o aplauso. A última bomba poética de uma noite inesquecível.
E depois? Depois sobra a memória. O eco. Sabe aquela sensação de que algo te refez? Que você não é mais o mesmo de antes? O aplauso é a marca desse acontecimento. É o grito de Dioniso renascido. É o grunhido de quem viu o impossível e sobreviveu. Por isso, Paco, por isso a gente te aplaudia daquela maneira febril como quem explode. Porque você nos ensinou que há fogo que purifica. Que há palmas que são orações. E que a arte, essa velha deusa insone, sempre volta para nos explodir de novo. Sempre.
Paco de Lucía (nome de batismo: Francisco Gustavo Sánchez Gómez) nasceu em Algeciras, Espanha, em 21 de dezembro de 1947, e se tornou uma das figuras mais revolucionárias e incendiárias da história do flamenco. Guitarrista autodidata desde a infância, foi moldado pelo pai e pelo irmão, e logo rompeu as fronteiras do tradicional ao fundir o flamenco com o jazz, a música clássica e também outras sonoridades do mundo. Parceiro de mestres como Camarón de la Isla, John McLaughlin e Al Di Meola, Paco redefiniu o que a guitarra podia ser: um instrumento de fúria, lirismo e transcendência. Morreu em 25 de fevereiro de 2014, mas sua obra continua vibrando como um acorde eterno que nunca se apaga.